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sábado, 5 de março de 2011

A preguiça, Roma, Os discos voadores e Outras coisas afins


 
        Dizia-me ontem João Sabiá, numa de suas
costumeiras observações de filologia impressionista, que o
"aí" (a conhecida preguiça do Norte) era mesmo um
bicho tão preguiçoso que até seu nome indígena era
brevíssimo: para que tanta sílaba? Coisa assim como
aquela batidissima história do vendedor de
amendoim...
        Discordei. A preguiça que a gente sente, a
preguiça no sentido próprio, é longa, arrastada.
        E o bocejo, quanto mais preguiçoso, mais
comprido é. Por isso dizia há tempos não me lembra quem
que a voz de Dona Gertrudes era uma voz de
cadeira de balanço. Ótimo.
        E o nosso caboclo, o nosso biriba, o nosso guasca
até, pitando até o último o seu toco, sorvendo até o
finzinho o seu chimarrão, quando quer dizer "re-
cruta", por exemplo, não diz "recruta" diz
"reculuta". É mais gostoso, mais brasileiro, mais de rede
ou do galpão.
        E a voz gostosa das mulatas, eu moço? Aí é que
está: voz de melado, langorosa, que aprenderam delas
as iaiás, na doce madorra dos cafunés, e até hoje a
conservam, graças a Deus, tão ben.
        Questão de raça, de clima..., não se é preciso ser
nenhum Gilberto Freyre para descobrir isso.
        Senão vejamos um caso bem simples e bem
significativo como o da tão conhecida palavra latina
corona. Eis o que aconteceu depois que se alastrou o
domínio e, com este, a língua dos imperialistas
romanos: na Itália, o seu berço, essa palavra continua
corona mesmo, o que não é nada de espantar; em
francês deu couronne, em espanhol, também corona,
em português, coma e, em inglês, crown.
        Que é isto, seu moço, que susto! Onde é que
estão as vogais? Onde é que está a palavra?
        - O gato comeu.
        - Não, foi o clima. Com aquela friagem toda,
como abrir tanto a boca? Preguiça? Qual! Com aquele
raio de clima, eles tinham de ser expeditos, tinham de
fazer movimento. Nada de redes ou coisa parecida:
quando muito, monossílabos.
Scotch, bastante scotch... Questão de clima, e
portanto de raça, e portanto de temperamento...
        -  Tenho dito.
        -  Mas - observou um marciano que, do alto do
seu disco voador, estava escutando telepaticamente a
nossa conversa mole - mas ele não acabou de dizer
que os próprios donos da palavra a pronunciavam
abertamente?
        -        Sim - confirmou o piloto.
        -        E não foram os romanos um povo de
conquistadores, como bem sabemos desde aquela época por
tele-pato-visão?
        - Povo? estranhou o piloto.
        -        Povo, sim!
        -        Mas, naquele tempo, o povo não se metia na
guerra. Quem fazia a guerra eram os profissionais, os
soldados.
        -        E o governo?
        -        Que governo?
        -        O governo! - explodiu o co-piloto, irritado
com o laconismo irônico do companheiro. - Pois o
governo não emanava do povo, como afirmam até hoje
os terrenos?
        -        Isso era também com os soldados.
        -        Ah, que povo feliz! - suspirou o co-piloto.
        Pois bem, quaisquer que sejam as reservas que
faça o leitor quanto às aspirações políticas deste
último, quanto às observações históricas do primeiro,
não é nada disto que me impressiona de momento. O
que me impressiona e entristece é o fato de que esses
nossos dois observadores, e todos os marcianos,
comunicam-se entre si e conosco apenas por via
telepática, como afirmam categoricamente os espíritas,
por testemunho dos espíritos. Pois se o leitor ainda se
lembra, João Sabiá e eu estávamos falando na
expressividade e gostosura das palavras. Especialmente
na gostosura. E se descerem e forem à Bahia,como
hão de saborear devidamente os pratos baianos, de
cujo sabor é parte integrante o sabor de seus nomes?
E se, ainda na Bahia, lhes oferecerem um recital de
Castro Alves? Pois sempre se mostra aos visitantes
ilustres o que há de melhor e mais típico na terra...
Entristece-me que lhes passe de todo despercebida a
incomparável beleza destes versos do Navio Negreiro:
 
Vêm os guerreiros helenos,
Belos piratas morenos
Que a vaga ironia embalou...
 
        Pois, se apenas lhes captarem a essência, que
restará desses versos? Bem sabe o leitor que o verso é,
antes de mais nada, uma fórmula encantatória e o
melhor poeta é aquele que tenha descoberto maior
número dessas mágicas cuja força reside na palavra
.

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