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sábado, 3 de setembro de 2011

História Mágica


Era um perfume tão pesado que os corpos se amolentavam, rendidos, e uma névoa de banho de vapor esfumava os contornos das flores de pétalas abertas, dos frutos enormes, que pareciam prestes a cair. Não se sabia se eram cobras dormentes, ou lianas semivivas, aquelas coisas pendidas nas galharias... Pássaros não se viam, nem sáurios furtivo, nem grandes ou pequenos quadrúpedes. Mas gritos misteriosos, que a gente não podia identificar, feriam de quando em quando os ouvidos, acordando-os do torpor em que os adormecia o zumbir ininterrupto dos insetos. Os pés chapinhavam como em barro, no musgo verdoengo que tapetava o chão.
Caminhávamos, arquejávamos, sem dizer palavra. O nosso guia e rei seguia à frente, invisível, sua presença acusando-se (nas horas de maior angústia, parecia) por um agitar frenético de guizos. Um dia, não mais o escutamos e cada qual, com um ingrato alívio, seguiu o seu próprio caminho. Cada qual, se extraviou, sentou-se, enfim, para morrer.
E cada um morria pensando invejosamente que os outros houvessem encontrado alguma coisa, uma fonte de virtudes nunca imaginadas, uma princesa, um mágico, algum Deus ainda bárbaro ou no seu mais adiantado estágio, mas sempre um deus, mas sempre alguma coisa. Pensavam em tudo isso, sim... E sentiam, no entanto, um monstruoso orgulho de morrer sozinho.


Hai - Kai


Do jeito que poderia ser não me serve
Do jeito que é me compete
Do jeito que foi não repete.


Transubstanciação

"Mendigo... ou seria a nossa figura no outro mundo?"

Ali, no canto da rua, uma sombra tremida
Caminha, caminha...
As folhas das árvores, no Frêmito, sentem seu medo
                                                                                  No vento
E, de repente,
Todas as coisas imóveis se desenharam mais nitidamente no
                                                                                           Silêncio
As pálpebras estavam fechadas...
Os cabelos pendidos...
E ao longo das janelas mortas
Estranhos passos se ouviam
E como resposta ao seu pedido, uma porta se abriu.
Anjos traçaram cruzes nas calçadas...
Era o mendigo – Senhor noturno das ruas!


Tra lá lá

"Qual a chave para abrir seu coração?
- A escolha é simples, a decisão que é crucial"

“Vamos falar de Amor”. Pediu-nos furtivamente uma colega.

Ah! Mas como se diz tudo, sem pensar em nada, e de modo tão natural e fatídico quando se acreditar está falando de Amor. Quanta sinceridade há nas nossas narrativas de amores e, valha-me Deus, de desamores. Não digo que não sejam verdades. Porém, tu bem sabes vivido leitor que a nossa verdade é uma realidade secundária. Pura invenção das nossas crenças mais desesperadas.

Pediu-nos para falar de Amor. Mas sim, só o que me trouxeste foi um romance de enredo torto e mal acabado. Descreveste-me uma história de amor. Não me falaste de Amor.

Sorrir-lhe tristemente ao me pronunciares que “O amor só ocorre uma vez na vida”.
Eu tentaria essa: “O amor só ocorre uma vez por vida. E cá para nós, tantas vidas nós temos ao longo de uma única!

Acho que ninguém me ouviu. Também pudera, não compartilho seus sofrimentos e isso parece a eles uma qualidade absolutamente necessária para se falar de Amor. Eu, abismalmente, ria. É como se dissessem que só teria o direito de falar da vida quem já morreu.

Ah! E o pior da noite: “Eu nunca tive assim um grande amor”. No que eu poderia transformar, pela conotação que deram à conversa, nisso: “Eu nunca vivi um romance”. E, para o meu alegre desgosto, lembrei horas depois de uma herança que nos deixou Mário Quintana e que nos dizia mais ou menos isso:

“A minha vida foi um romance” – diziam, depois de uma pausa – e um suspiro, aquelas velhinhas que apareciam antigamente nos lares a vender rendas e bordados. Não sei por que os de casa desconversavam. Por sinal, que anos depois escrevi, para consolá-las postumamente, um poema que começava assim: “Minha vida não foi um romance”...

Não, a vida nunca é um romance: falta-lhe o senso de composição, o crescendo que leva ao clímax. Tudo acontece tão sem lógica e sem preparo que os seus golpes nos deixam atônitos, mas de olhos secos, como se fossemos heróis, nós que enxugamos furtivamente os olhos no escuro das salas de cinema – só porque o diretor do dramalhão soube desenrolar devidamente o filme."

É, esperto leitor, como já de certo percebeste, falou-se de qualquer outra coisa, menos de Amor. E espero, para o seu próprio bem, que não penses que irei aqui terminar a desgraçada conversa. Entretanto, farei, em tom triunfal de despedida, um resumo do que o mundo – e, é claro, os meus românticos amigos – defini por amor:

“O amor é uma concórdia de desacordos, onde só o que se afirmar é a não felicidade em aceitar a discordância da concórdia”.